RIO - Sozinha no palco, claramente pouco à vontade, Cássia Eller avisa, como quem não sabe o que dizer: “Vou começar”. Dá uma risadinha nervosa. Cospe no chão num movimento pouco natural. Dedilha o violão a esmo. E começa — “Gatas extraordinárias”, de Caetano Veloso. O desconforto fica para trás, e ela se lança sobre a canção dando-lhe o tom exato de malícia, com um violão envolvente, atento à dinâmica, às nuances da música.
A alteração de estados — do desconforto nos intervalos entre as músicas ao domínio do violão, da voz, das canções — marca o show gravado em 2001 na casa hoje chamada Citibank Hall e lançado agora no CD (16 faixas) e DVD (12) “Do lado do avesso” (Universal). Rara apresentação de Cássia no formato voz e violão, o show foi parte do projeto “A luz do solo” — que na década de 1980 gerou discos de artistas como Caetano Veloso e Geraldo Azevedo.
O show de Cássia pelo projeto não foi gravado para um DVD. O registro que se vê em “Do lado do avesso” vem das duas ou três câmeras que geravam as imagens para o telão naquela noite de junho de 2001 — poucos meses antes da morte da cantora, em dezembro daquele ano. Ou seja, não há movimentos de câmera ambiciosos, não há um cenário que renda belas imagens, não há um pensamento estético que amarre o que se vê ali. O que resta, portanto, é a música — e o registro que, na origem, estava preocupado apenas em ampliar, de forma crua, a figura da artista para quem estava mais afastado do palco.
A limitação é, portanto, engrandecedora. O foco é o canto, o violão, a expressão — seja de nervosismo, seja de intenso amor, como em “All star” e “1º de julho”. Revezando-se entre violão de aço, de nylon e de 12 cordas, Cássia mostra uma técnica que — pelas imagens que conduzem a esse olhar concentrado e pelo fato de ela poucas vezes se apresentar sem sua banda — pode ser apreciada como nunca. Ela aparece clara, sem sobras ou exuberância virtuosística, seja no standard “You’ve changed” (única em que ela se apresenta com um convidado, o saxofonista Fábio Meneghesso), em “Eleanor Rigby” (em reggae, com vocal de sotaque jamaicano), em “Queremos saber” (que em sua doçura contundente sintetiza o espírito do show) ou em “Diamante verdadeiro” (que ela erra ao tentar imitar Maria Bethânia e insiste até conseguir e celebrar a vitória com uma gargalhada, numa das cenas mais belas do DVD).
A presença de Beatles e Gil ao lado de Zé Ramalho (“Vila do sossego”), Duke Ellington (“I ain’t got nothing but the blues”), uma composição instrumental da própria Cássia (a quase vinheta blues “Do lado do avesso”) ou Vitor Ramil (“Espaço”) não são motivadas por um suposto desejo de ecletismo poser. Tudo soa sincero e íntimo da cantora — o mesmo no longo extra do DVD, com músicas extraídas de outros DVDs, que ora tocam na mesma doçura contundente de “Do lado do avesso” (como “Relicário” e “Maluca”), ora apontam a agressividade punk da cantora (“Smells like teen spirit” e “Rubens”). Tudo Cássia, exposta em sua força.
Cotação: ótimo