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Sérgio Bianchi entre a revolta e o escárnio

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RIO - Construído com o argumento de que “a esquerda é um esporte da burguesia”, “Jogo das decapitações”, o novo longa-metragem de Sérgio Bianchi, já finalizado, carrega um espírito premonitório desde sua gênese. Atacando questões como as indenizações às vítimas de tortura na ditadura militar, o filme foi feito antes da onda de protestos hoje espalhada pelo Brasil. Há um ano, o cineasta paranaense rodou em São Paulo, onde vive, sequências de passeatas similares às que contagiam o país. No entanto, nos protestos de Bianchi não existe clima utópico. Neles, há escárnio, humor negro e desesperança, elementos característicos de um cineasta famoso pelo pelo teor inflamável de filmes como “Cronicamente inviável” (2000), aqui elevado à potência máxima do niilismo. Nesta entrevista, o diretor de 68 anos fala das divisões de pensamento de sua geração, ataca a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e acusa o Brasil da era Dilma de não ter mais forças de oposição.

Ao acompanhar um jovem sociólogo dos anos 2000, vivido por Fernando Alves Pinto, em suas relações com vítimas da tortura nos anos de chumbo, “Jogo das decapitações” faz jorrar sangue de todas as latitudes da política brasileira. Vividos por atores como Sérgio Mamberti, Clarisse Abujamra e Maria Alice Vergueiro, personagens que combateram a ditadura hoje se renderam ao jogo do poder. De que modo o filme é um ataque à esquerda?

Eu não sou antipetista, só estou de mal com o país. Enchi o saco por ver que, no Brasil, não existe mais oposição. O comportamento populista do governo e a democratização da corrupção tornaram tudo igual. Tudo é encenação, jogo de poder. Mas, como um dos personagens fala no filme, “o óbvio é mais difícil de se detectar”. Meu novo filme (antes batizado de “Carisma imbecil”) trata da guerra velada que rachou minha geração. De um lado havia os revolucionários que se dividiam em mais de 30 facções. Do outro, havia aqueles chamados de desbundados, que lutavam pela arte.

Qual foi o seu lado?

O do desbunde. Eu era um anarquista. Invadi edifícios acreditando que havia milhões de outras formas de mudar o mundo fora a luta armada. Um dia, no fim dos anos 1980, ou início dos 90, esbarrei nas ruas de São Paulo com uma velha colega de militância do Paraná. Ela tinha entrado para a política, num cargo alto, e me chamou para um jantar. Eu fui. Era um jantar repleto de gente que foi ligada a movimentos de esquerda. Ela me apresentou a eles assim: “Este é o Sérgio, um cara diferenciado de nós porque não optou pela luta armada. Mas ele deve ser respeitado porque abrigou perseguidos políticos da ditadura em sua casa. Eu, inclusive”. Era mentira. Nunca a escondi. A questão que me incomoda e que está no filme é que as pessoas da esquerda pararam nesse velho discurso de vítima.

No filme, inscrito para concorrer no Festival do Rio (de 26 de setembro a 10 de outubro), o personagem de Fernando Alves Pinto esbarra com passeatas, reprimidas severamente pela polícia. A violência policial no filme é semelhante a que se viu nas ruas, nos protestos reais. Qual é sua visão das recentes manifestações?

Elas abriram uma caixa de Pandora, pois fizeram a periferia perceber que ela pode tocar o terror. E aí a Dilma aparece prometendo às massas que vai fazer uma reformulação política. Isso foi um truque populista. Escute, eu não sou PSDB, não sou contra o PT, mas eu ando na rua e vejo as coisas. Eu vejo que a injustiça social precisa existir para que as pessoas possam criar ONGs de inclusão e viver delas. E eu vivi a agitação de 1964 e 1968 e sei que o discurso que se faz hoje sobre aquele período não se encaixa com o que eu vi na época.

Na trama, a personagem de Clarisse Abujamra busca ser indenizada pela tortura, enquanto o personagem vivido por Paulo César Peréio e seu filho João Velho (em diferentes épocas) sintetiza os intelectuais que desbundaram. Mas, no longa, é um jovem, vivido por Silvio Guindane, quem mais protesta, atacando todos os lados do país e sua esquerda. O que essa fauna de tipos representa?

Cada personagem representa uma forma de pensar. Cada um é um carteiro, que dá uma mensagem. Silvio vive o mais inflamado. Mas não sou eu. Eu virei um conservador. Tinha uma avó que me dizia: “Quando jovem, seja um incendiário. Quando velho, seja um bombeiro”. Estou na fase do bombeiro. Mas ainda consigo afiar a minha maldade ao olhar o Brasil e falar dele. Eu não invento nada. Só observo a realidade.

E qual é o seu espaço no cinema brasileiro? Filmes de denúncia como os seus custam a ganhar as telas e a ter circuito. O que acontece?

Faço filmes para refletir o país onde vivo, mas eles sofrem, sim, uma censura. É a censura da burocracia, pois se criou uma indústria virtual no Brasil. De um lado, há uma briga pelo poder entre os que não têm tela, divididos entre associações. Do outro, existem pessoas que encontraram um caminho de sobreviver fazendo comedinhas. Mas a questão é: o cinema brasileiro só vai ser uma indústria, de verdade, quando os administradores públicos, leia-se Ancine e secretarias de Cultura, perceberem que 90% do circuito exibidor estão nas mãos dos americanos.

E como você vê a dicotomia entre filmes de arte e cinema-pipoca no Brasil?

Criou-se uma falsa divisão entre blockbuster e o dito “cinema independente”, que corresponderia aos filmes bons, de autor. Este ano, todo mundo elogiou “O som ao redor”, que eu não vi. Mas eu faço uma pergunta: se esse filme é tão bom, por que o governo não dá ao cara (Kléber Mendonça Filho, seu diretor) tudo o que ele precisa para fazer um novo filme? Se ele é bom, merece. Mas isso não acontece. O cara vai ter que passar por toda a burocracia, ficar na fila, sem nenhum reconhecimento. É a injustiça da burocracia com que a Ancine nos afoga. Que mercado cinematográfico é esse?


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