RIO - Falta pouco mais de uma hora para a pré-estreia da sua nova peça, e Enrique Diaz tem pressa. Devora uma quiche no balcão do café e voa para o camarim. Senta-se de frente ao espelho, mas olha para o lado à espera da primeira pergunta. Talvez não seja bem pressa, mas urgência. E ela se denuncia nos gestos, nos olhos arregalados, nas palavras que voam da boca para falar de “Cine monstro”, que estreia oficialmente na sexta-feira no Oi Futuro Flamengo, após quatro sessões para convidados realizadas entre a última quinta e a noite de ontem. Em cena — onde se multiplica em 13 personagens — ou fora dela, onde se divide em novos projetos de teatro, cinema e TV, parece evidente uma necessidade de alargar limites, de ampliar seu raio de ação.
Afinal, nos últimos 25 anos anos, sua imagem esteve não apenas ligada à Cia. dos Atores, mas à condição de diretor de um dos grupos mais importantes e observados do panorama teatral brasileiro. Só que, desde que anunciou o seu desligamento da Cia., no ano passado, Diaz tem sido cada vez mais ator. E como ator tem se lançado a experiências diversas. Além da nova peça, o primeiro monólogo da sua carreira, ele acaba de entrar em cartaz nos cinemas como o protagonista do longa “Noites de reis”, dirigido por Vinícius Reis, e pelo qual foi eleito melhor ator no último Festival de Brasília. Também no cinema, ele poderá ser visto no primeiro longa de ficção de Carolina Jabor, “Boa sorte”, e na cinebiografia “Não pare na pista”, sobre Paulo Coelho, ambos previstos para 2014. Já na TV, ele integra o elenco da série “3 Teresas”, na grade atual do GNT, e até o fim do ano espera dar partida aos ensaios de uma nova peça, “A vida sônica de uma tartaruga gigante”, escrita pelo japonês Toshiki Okada.
— Atuar em três veículos é interessante porque te desloca e faz pensar o trabalho do ator de modo diferente — diz. — Você se vulnerabiliza de outras formas, lida com outros diretores, com projetos criados por outras pessoas. Não é você o criador daquilo, então são experiências que têm me possibilitado aprendizados, uns mais e outros menos prazerosos. Mas quero realmente atuar mais.
A ligação mais estreita entre o teatro e o audiovisual, no entanto, ainda está por vir. Afinal, entre uma e outra direção para os textos do canadense Daniel MacIvor — “In on it” (2010), “A primeira vista” (2012) e a atual “Cine monstro”, que também flerta com o cinema — Diaz foi amadurecendo a ideia de adaptar e transformar as peças de seu autor-fetiche numa série, que deverá ser produzida em parceria com a produtora O2.
— Os textos do Daniel têm a ver com a mistura entre cinema e teatro — diz. — Estou interessado no tipo de relação que eles estabelecem com o público. Há um flerte com a performance, com o stand-up, uma atuação que permite certos improvisos, uma provocação com o público. E o público tem uma função importante nos textos dele. O Daniel joga o tempo todo com o espectador, mas não de um modo interativo. O foco é meio que investigar o interesse das pessoas nessas histórias violentas, o que, por fim, revela mais sobre os espectadores do que sobre os próprios personagens.
História de filho que esquarteja o pai
“Cine monstro” carrega no título a promessa de um bombardeio de imagens grotescas. Não deixa de estar certo, mas a coisa vai além:
— Existe na peça a ideia de um filme que, de alguma forma, se confunde com a História da humanidade. O cinema como uma espécie de arcabouço do inconsciente, onde vemos e projetamos muitas situações das nossas vidas.
No escuro dos primeiros segundos, o protagonista cochicha: “Babaca!” E ordena: “Silêncio, o filme já vai começar”. Logo, o que se vê é uma dramaturgia fragmentada, não linear — “Meio (David) Lynch, meio (Quentin) Tarantino”, explica Diaz —, que embaralha num ritmo vertiginoso uma série de tramas que comungam de um mesmo tenebroso ponto de partida: a história de um filho que esquarteja o próprio pai. Carregadas de suspense e mistério, as cenas se acoplam pouco a pouco, construindo um quebra-cabeça de imagens ao mesmo tempo surreais e macabras. Para além da estrutura dramatúrgica, no entanto, há ainda o cenário, composto por três platôs que são fulminados por uma sucessão de projeções visuais, entre elas imagens de um roteiro cinematográfico imaginado por um dos personagens da peça:
— É um texto mais radical que os outros (“In on it” e a “A primeira vista”) no sentido de que representa um afeto que não deu certo. É um texto que trata do mal, mas que se eu disser apenas isso, desse jeito, parece que a coisa descamba para o horror. E não tem nada a ver, há humor. É um texto que faz rir, desloca, causa estranhamento.
Sobre estar se autodirigindo e sozinho em cena pela primeira vez, Diaz até reconhece um estranhamento, mas de modo algum desconforto:
— É meio louco estar sozinho, não ter a companhia das pessoas de um grupo mas, ao mesmo tempo, existem diversos parceiros — diz. — É um trabalho em equipe, embora numa dinâmica diferente da que eu tinha com o grupo.
Foi justamente a dinâmica de responsabilidades e compromissos que tomava para si à frente do grupo que o levou a deixar a Cia. dos Atores — mais do que uma possível ruptura de afinidades pessoais ou estéticas.
— Minha saída não teve a ver com a questão artística, mas com o desgaste da colaboração. Administrar muitas vontades, conceitos, cronogramas, o encadeamento entre um espetáculo e outro tendo que manter a unidade de uma investigação estética. Agora me sinto bem, livre para atuar em projetos e meios diferentes.
Se depender de Vinícius Reis e Carolina Jabor, as portas do cinema estarão escancaradas às suas múltiplas facetas e predisposições.
— Sempre quis fazer um filme com ele — diz Reis. — Quando li o roteiro de “Noites de reis” senti que era o momento. A troca foi intensa durante as leituras e na filmagem. Foi um aprendizado ver como ele se apropriou do personagem, fora a compreensão que ele tem do trabalho em equipe, de todos ao redor dele.
Carolina, que trabalhou pela primeira vez com Diaz na peça “A paixão segundo GH”, fecha a claquete:
— Fiz as projeções para a peça e pirei com ele dirigindo. Foi um privilégio tê-lo no filme. O fato de ele ser um ator-diretor trouxe muita tranquilidade. Por mim, o teria todos os dias ao meu lado.