Rio - A hora da colheita pode ser o momento para reavaliar as sementes. Nos 30 anos da chamada Geração 80, alguns dos principais artistas do período têm suas obras revisitadas em mostras e livros. Mas uma coleção que ajuda a contar sua história segue desconhecida: no prédio da Biblioteca Central da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, obras que mostram o início das carreiras de artistas como Leda Catunda, Daniel Senise, Angelo Venosa, João Magalhães e Maurício Bentes estão expostas em salas e corredores, vizinhos a estantes de livros e mesas de estudo.
A coleção pertence à Galeria da UFF, fechada há 3 anos para reforma do Centro de Artes da universidade. É pequena (cerca de 50 peças) e bem restrita aos anos 1980, mas tem valor histórico. Em bom estado de conservação, o acervo não figura em exposições relevantes e raramente é visto por quem não é de lá, apesar de a biblioteca ser aberta ao público.
Inaugurada em 1982, a galeria começou a ter programação regular no ano seguinte, quando Luiz Sérgio de Oliveira assumiu a direção do espaço. Niterói vivia um momento interessante: o Centro de Artes contava com o Cine UFF e concertos de música semanais. No Museu do Ingá, as oficinas da gravadora Anna Letycia e do escultor Haroldo Barroso formavam artistas como Bentes, Ana Miguel, Analu Cunha, João Modé e Armando Mattos.
— Havia várias pessoas pensando e trabalhando pela arte no Rio: Paulo Roberto Leal, entre os curadores do MAM, ele e Marcus Lontra no Parque Lage, Paulo Herkenhoff no Instituto Nacional de Artes Plásticas, na Funarte — diz Oliveira, diretor da galeria até 1986.
Entre 1983 e 1986, no auge, a UFF expôs artistas cuja carreira já era reconhecida — caso de Paulo Roberto Leal, quase um “padrinho” da galeria, Anna Bella Geiger, Iole de Freitas, Mira Schendel, Carlos Fajardo, Tunga e Waltercio Caldas — mas também deu chance a talentos emergentes. Na esteira da exposição “Como vai você, Geração 80?”, aberta em julho de 1984 no Parque Lage, a galeria organizou, em parceria com o Ingá, a mostra “Arte brasileira atual”. Com patrocínio privado, a exposição funcionou como um salão regional: os prêmios de aquisição dados a alguns artistas se transformaram no início do acervo da UFF. As obras de Venosa, Senise, Bentes e Ricardo Maurício entraram para a coleção assim.
A pintura de Maurício, “Guerra dos sexos”, e um trabalho de Claudio Paiva, “Mamãe fez um bife à milanesa bom pra cachorro”, dizem muito sobre um “espírito de época” desta geração. Mas há outros indícios importantes no acervo.
— A obra que está na UFF (“Scipião”, 1984) é a primeira de um momento em que minha escultura ganha mais consistência e envergadura — lembra Venosa.
Este “primeiro Venosa” ilumina o escultor maduro que o artista é hoje. O mesmo ocorre com a pintura sem título de Senise, também de 1984. Ainda em tinta a óleo, ela mostra os caminhos iniciais de um artista cuja obra passaria por muitas transformações, mas sem abrir mão de inquietações como o diálogo com a história da arte e com a arquitetura.
— A galeria da UFF atuou além de sua programação, gerando acervo e relevância para o Rio de Janeiro — lembra o curador Marcus Lontra. — Pensava-se uma política pública para a arte. Hoje, estado e prefeitura focam em mostras temporárias, não formam coleções. Exposições são importantíssimas, mas seriam ainda mais se criassem acervos e deixassem lastro para o futuro.
A memória guardada na UFF dá novo sabor ao grande balanço por que passa a década de 1980. Nascida sob o signo da polêmica, esta geração, estereotipada como a da “volta da pintura”, polarizou a crítica de arte brasileira em dois grupos: um contra e outro a favor destes novos artistas. Mais preocupados em defender seus pontos de vista — contra a “arte de mercado” ou a favor do “prazer de pintar” — ambos tiveram dificuldade para analisar as produções individuais do período, construindo discursos a partir da arte, e não de pressupostos ideológicos.
Passados 30 anos, é hora da revisão, através de projetos de muita relevância: Beatriz Milhazes, que foi curadora-convidada da Galeria da UFF, é tema de livro da editora Taschen e ganha mostra retrospectiva no Paço Imperial em agosto; Venosa viaja em breve pelo Brasil com a bem-sucedida exposição panorâmica que esteve no Rio e está na Estação Pinacoteca; Nuno Ramos está em cartaz com a remontagem de sua primeira individual no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo; Leonilson vai ganhar grande exposição na Europa, com curadoria de Adriano Pedrosa; e, depois do sucesso de “Amor” no MAM-RJ, Zerbini prepara livro sobre seu trabalho. Enxergar os primeiros passos dessa geração pode dar novos sentidos ao momento em que ela se transforma em História.
* Especial para O Globo