RIO - As letras com caneta esferográfica na capa da fita cassete da loja Fotomania deixam evidente o clima artesanal — tosco até — da gravação de 1993. Mas hoje qualquer pessoa interessada na música pop brasileira das últimas duas décadas reconhece com facilidade o valor histórico do que está ali ao ver o nome da banda estampado: Planet Hemp. A fita demo traz o vocalista Skunk (morto em 1994, sua voz já não está no primeiro disco da banda, “Usuário”, de 1995) e versões diferentes de canções lançadas oficialmente dois anos depois pela banda de Marcelo D2. O registro voltou a circular ao cair na rede recentemente, em MP3, pelo blog La Cumbuca. Mais que uma curiosidade, ele é a primeira pepita de uma mina que está prestes a ser mais explorada: as fitas demo produzidas pela geração do rock brasileiro dos anos 1990. Iniciativas como as do La Cumbuca (que começou a digitalizar seu acervo), da midsummer madness (gravadora independente que tem planos de fazer o mesmo com seu catálogo de cassetes) e de Gabriel Thomaz (que escreve um livro sobre o assunto) chamam a atenção para essa parte da memória de uma geração que, na dança dos formatos vinil e CD, correu o risco de ficar esquecida e morrer desmagnetizada em fundos de gavetas.
— A fita demo foi o suporte mais democrático e mais prático para a maioria das bandas da época — lembra Rodrigo Lariú, criador da midsummer madness. — O vinil havia sido assassinado pelas majors e o CD ainda não era algo tão barato e simples de se produzir no começo da década.
Raimundos cantando sertanejo
Vocalista do Autoramas, Gabriel acrescenta que o caminho que possibilitou que a geração dos anos 1980 gravasse seus discos se fechou nos 1990.
— O mercado estava voltado para lambada, sertanejo. As gravadoras achavam que o rock era coisa do passado. Mas ele continuava existindo para bandas como Raimundos, Little Quail, Mundo Livre, Pato Fu, Maskavo Roots... Todos lançaram suas demo.
A tal fita do Planet Hemp de 1993, testemunha desse período, estava guardada numa caixa à qual Otaner, fundador do La Cumbuca, teve acesso. Ela pertencia a Fábio Fernandes (hoje seu colega de blog), que precisava liberar espaço em casa e resolveu doá-la.
— São uns 25 cassetes — conta Otaner. — Um acervo não tão grande, mas com coisas bem significativas. Já coloquei no ar, além da demo do Planet, uma do Juliete (que tinha em sua formação BNegão, que substituiu Skunk no Planet Hemp, e JR Tostoi, que formou o Vulgue Tostoi e hoje é produtor requisitado). Tenho ainda fitas de muitas bandas importantes para o underground da época, como Pelvs, Poindexter, Cigarretes, Beach Lizzards, Sex Noise, Cabeça... E curiosidades como a coletânea “Cult cover demo”, de 1993. Nela, tem Raimundos tocando “Desculpe mas eu vou chorar”, por exemplo.
Gabriel lembra que muitas bandas, como Camundjangos (“Chique, chique, chique/ Tô de minissaia/ Chique, chique, chique/ Tô de óculos de sol”), criavam hits regionais apenas com as fitas demo, que chegavam a vender milhares de cópias — com a midsummer madness, ele editou em 2007 a coletânea “Fim de século”, com 30 gravações extraídas desses cassetes. Junto com seu livro, ainda sem título, o músico vai lançar um site com as versões remasterizadas e digitalizadas de cerca de cem fitas de seu acervo de 400:
— Muitas coisas são ultrarraridades. Tem Raimundos quando ainda era um trio, com Digão, Canisso e Rodolfo. A fita demo original do Graforreia Xilarmônica, de 1988. Tenho uma fita do Planet Hemp cantando uma versão de “Hemp family” incrível. Na versão que saiu em disco, D2 lista O Rappa e Funk Fuckers como a hemp family. Na versão que tenho, eles falam em Raimundos, Little Quail, Câmbio Negro (bandas de Brasília do período).
Ao lado dos fanzines, as fitas eram a grande forma de escoar a produção do rock. Uma produção que, no subterrâneo, conseguiu articular um mercado, como Lariú explica ao comentar a situação do Rio:
—Algumas lojas começaram a vender fitas demo. Então, além de circular a música, elas já davam um pequeno retorno financeiro para as bandas. E serviram de termômetro para contratações. As mais vendidas na Rock It, loja e selo de Dado Villa-Lobos e André Mueller, viraram discos. Second Come, que vendeu mais do que os CDs, Pelvs, Gangrena Gasosa — diz Lariú, que aponta destaques de seu acervo. — Além das da midsummer madness, tenho também as de bandas como Los Hermanos e a pré-“Rotomusic” do Pato Fu.
BNegão lembra que o circuito de shows acompanhava o espírito nada mainstream:
— Do lado de cá (região central do Rio) era o Garage e o Circo Voador, que tinha festivais como o Super Demo. Mas havia muita coisa em Caxias, Campo Grande...
O rapper comemora a volta da circulação das fitas no formato digital, até como forma de entender a música brasileira produzida nos anos 2000:
— O underground de uma década faz o mainstream da seguinte. Sonic Youth e Pixies nos anos 1980; Nirvana nos 1990; Defalla nos 1980; Planet Hemp nos 1990; Acabou La Tequila nos anos 90; Los Hermanos nos 2000.
Lariú completa:
— As bandas dos anos 1990 criaram uma infraestrutura para uma cena independente brasileira. Foi por causa dos fanzines e das demos que os festivais apareceram, que a imprensa e as gravadoras prestaram atenção e a coisa explodiu. E elas deixaram a música. Que precisa ser ouvida. Existe uma riqueza só registrada em fitas demo.