NOVA YORK — Ao longo dos oito episódios de "Sharp objects", a sinistra série da HBO que terminou no domingo à noite, Adora Crellin, a matriarca interpretada por Patricia Clarkson, revela-se mais do que apenas a mãe de Camille Preaker (Amy Adams), uma repórter que retorna à sua cidade natal no Missouri para investigar os assassinatos de garotas adolescentes.
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Clarkson navega freneticamente pelos lados conflitantes de Adora: a mãe aflita de uma criança morta e de uma adulta com histórico de automutilação e alcoolismo; a governante de fato de uma pequena cidade com uma história perturbadora; e, como se constata, a mulher que sofre de uma doença conhecida como "Munchausen por procuração", na qual ela deixa uma criança doente para chamar a atenção dos outros e tornar a criança dependente dela.
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Falando por telefone de seu apartamento em Nova York, Clarkson explicou os desafios de interpretar uma personagem com tantas camadas quanto Adora.
Ao final da série, sua impressão de Adora mudou em relação a que existia quando começou a ler o roteiro?
O ar sai da sala às vezes com Adora, e isso tem que acontecer. Torna-se esse mundo claustrofóbico e insular, do qual você acha que ninguém vai escapar.Comecei dando toda a graça, luz, coragem e retidão que pude reunir para ela, porque achava importante para a personagem, para o roteiro, deixar Gillian (Flynn, produtora-executiva e autora do romance que inspirou a série) orgulhosa. Assumi essa responsabilidade, pois sabia que acabaria num lugar muito diferente de onde comecei. E assim foi.
Eu fiquei em Los Angeles (no set) por cinco meses, e talvez isso diga tudo: eu tinha pedaços de folga, mas nunca poderia voltar a Nova York como Adora. Por alguma razão, eu não poderia estar em casa no meu apartamento em Nova York como Adora. Algo me dominou. Eu não quero soar como uma "atriz pretensiosa", mas essa personagem se infiltrou em mim de uma maneira muito difícil.
No episódio 5, eu não conseguia me livrar da brutalidade pura, e ainda assim da tristeza e dor excruciante, que eu sentia às vezes fisicamente. Eu tive que tirar esses pregos, eu tive que me realinhar. Eu tive que mudar meus órgãos (risos). Eu tive que deixá-la para trás e voltar para Patricia aqui em Nova York, que é uma vida diferente de Adora em Wind Gap.
Você já teve essa experiência com uma personagem antes?
Eu tenho às vezes, mas elas são poucas e distantes entre si. Eu diria que a última vez foi, claro, com Blanche (DuBois, de “A Streetcar Named Desire” em 2004), porque você nunca se recupera de interpretar Blanche. Eu não acho que seja algo raro ou especial; é exatamente o que acontece em nossas vidas como atores. Mas com Adora foi episódico, então cena a cena, episódio a episódio, nuvens de tempestade se reuniram. E eu precisava de um poncho (risos).
Quando a conhecemos, fica evidente que ela tem feridas abertas — há muito trauma em sua vida. Imagino ser algo difícil de encarnar por um longo período de tempo.
Foi, sim. Tenho a sorte de vir de uma família muito boa, de pais muito bons, classe média, muito americanos. Eu tive amor incondicional, algo que não consigo imaginar como viver sem. Então veio Adora, uma mulher que eu acho que nunca teve amor verdadeiro e viveu essa violência geracional, esse trauma e abuso que tem estado com ela por tanto tempo. Foi literalmente deslumbrante interpretá-la. O ar sai da sala às vezes com Adora, e isso tem que acontecer. Torna-se esse mundo claustrofóbico e insular, do qual você acha que ninguém vai escapar.
A cena em que ela diz a Camille que nunca a amou é uma das mais devastadoras, por ser o momento em que ela foi mais honesta.
Isso é Adora. Acho que às vezes ela é surda, sem sentimentos, sem uma compreensão verdadeira do que é o amor. Ela não tem instintos maternais genuínos, porque nunca recebeu isso. É uma forma de trauma contundente quando você sofre abusos na infância.
Esse ferimento se estende à cidade — todos estão feridos e a violência sexual é uma parte central da identidade da cidade. Você estava filmando tudo isso depois das revelações iniciais de Weinstein ou das primeiras revelações do #MeToo? Isso afetou alguma dinâmica no set?
Eu não gosto de misturar fatos e ficção. Era uma situação tão séria com Harvey, e não sei se pensamos nessas sérias alegações de estupro e abuso. Não sei se havia desenhado um paralelo. Há um certo nível de agressão sexual (na cidade), mas não acho que seria igual ao que aconteceu em nossa indústria.
Você acha que Adora está ciente de que ela na verdade matou Marian?
Já me perguntaram isso. Isso fica comigo - é algo que eu mantenho muito particular. Eu sei o que aconteceu, mas é uma parte privada dessa personagem sobre a qual eu nunca falei.
Mesmo com Flynn e os criadores?
Eu tive uma conversa com Gillian sobre isso, e só. Nós decidimos que seria a minha decisão.
Você estava familiarizada com Munchausen por procuração antes desta experiência?
Ah, eu sou fascinada há muito tempo. Eu estava bem ciente disso. Eu conheci gente que tinha sofrido com isso.
Uma mãe?
(Pausa) Uma pessoa. Há muita informação sobre isso. Documentários, livros. Ela toma várias formas, mas, no final, trata-se basicamente de controle e poder. Adora é uma Munchausen muito particular, então ela se tornou uma pessoa um pouco diferente. Uma personagem dentro de uma personagem. Ela se torna outra pessoa por um momento, acredita estar fazendo o bem, o que é certo para induzir seu filho a sucumbir a você. Precisar de você, amar você, e o mais importante é a total dependência de você.
Como você equilibrou a experiência de aprender sobre a condição dessa pessoa ao tentar descobrir como você iria moldar o personagem? Isso foi uma negociação complicada?
Foi uma reunião muito simples. Foi muito informativo e extraí o que pude. Mas não foi a linha de base dessa personagem. Apenas alguns fatos e sentimentos que eu trouxe. Não foi instrumental na criação de Adora.
Aquelas cenas no último episódio, em que ela envenena Amma e Camille, são nauseantes, porque é uma Adora diferente — uma versão amorosa e carinhosa que está realmente destruindo essas pessoas.
Essa é a única forma de amor que ela conhece. O que acontece com o Munchausen por procuração, essa é a sua ideia de amor verdadeiro. Quando ela muda, quando a doença toma conta, ela se vê em uma luz muito específica. É uma necessidade desesperada, uma necessidade quase obsessiva de assumir a vida dessa pessoa. E foram algumas das cenas mais difíceis que já interpretei.
Tendo feito esse nível de pesquisa, você se encontrou com pais de crianças que se mutilam?
Sim. Isso é difícil de falar, porque não acho que seja apropriado. Porque mais uma vez é (misturar) fato e ficção. Eu fiz o que pude — conversas simples. E Amy e eu discutimos isso — padrões, processo de pensamento em relação a essa doença em particular.
O que você acha do relacionamento de Adora com Alan? Na maior parte, ele é completamente respeitoso com ela, mas em uma cena no final do episódio 4 ele aparece como uma presença ameaçadora em seu quarto. E então nada é dito sobre isso novamente.
Eu acho que ele ocupa um espaço. Eu não acho que seja um casamento de conveniência; mas que se tornou um. Ela teve um primeiro casamento muito ruim, e acho que Alan era, em sua mente, um bom homem, o tipo de homem com quem ela sempre quis se casar. Eu acho que ele preencheu o vazio perfeitamente. E eu não acho que ela é tão indiferente a ele quanto as pessoas estão dizendo. Acho que ela precisa dele e confia nele, e que esse momento no quarto no episódio 4 é um momento raro. Não acho que seja uma ocorrência normal, mas que já aconteceu antes.
Quase como um padrão?
De certa forma, acho que é esperado. Que eles literal e figurativamente dançam um com o outro. E, certamente, com suas doenças, aprendemos mais sobre isso.
Parece que até o final da série ele chega a algum tipo de percepção de que estava escondendo a verdade de si mesmo.
Ou até é um pouco cúmplice. Nada é preto e branco nesta série. Um monte de zonas cinzentas e muitas emoções misturadas. E eu acho que eles estão sempre mudando. É surpreendente: na rua, todo mundo vem me dizer o que acham que está acontecendo, e ainda assim ninguém acertou.
Você é parada em Nova York e as pessoas têm suas teorias?
Oh, Deus Oh Deus. Oh Deus. Oh Deus. Oh Deus. Oh Deus. Foram momentos e tanto.