RIO — No mês passado, o encenador suíço Milo Rau arrebatou a plateia e a mídia especializada no 72º Festival de Avignon, com o seu mais recente espetáculo: “La reprise — Histoire du théâtre 1”. Para o “New York Times” e o “Le Figaro”, a obra “dominou os debates” e foi o “maior momento do festival”. Impressão confirmada pelo “The Guardian” — “‘La reprise’ é “extraordinariamente madura, envolvente e convincente” — e pelo “Libération”: “Essa emocionante tragédia é uma demonstração magistral do que o teatro pode alcançar”.
Inédito no Brasil, Milo deverá ser uma das principais atrações da próxima Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), que acontece em março de 2019 em São Paulo, onde pretende apresentar “La reprise” e outras duas montagens.
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Na última década, Milo Rau se tornou um dos mais importantes nomes do teatro mundial. À frente de uma central de criação multimídia, o International Institute of Political Murder, ele tem criado peças, performances, filmes, instalações, além de trabalhos cujos formatos de relação com o público vêm dos campos da política, da Justiça e da mídia, como congressos, tribunais, debates e programas de TV e de rádio.
Vencedor dos principais prêmios teatrais da Suíça e da Alemanha, Milo — um ex-ativista e sociólogo, pupilo de Tzvetan Todorov e Pierre Bourdieu — tem se destacado pelo modo como combina engajamento político e uma pesquisa de linguagem multimídia, que borra as fronteiras entre o teatro, o cinema e o documentário. Suas obras investigam, sobretudo, a relação entre política e violência, e são construídas a partir de histórias reais, sejam conflitos históricos e geopolíticos, ou casos recentes de crimes. A peça abre discussões sobre ética e representação. Sobre o porquê de mostrar uma cena de tortura de 20 minutos
“La reprise” investiga, num primeiro momento, a relação pessoal dos atores da peça com o fazer teatral. Diante de câmeras, eles contam suas histórias como se participassem de uma audição para uma peça que tem como objetivo recriar um caso de assassinato ocorrido em Liège, na Bélgica, em que um jovem homossexual foi torturado e morto por um grupo de garotos.
Aos poucos, a recriação do tal crime se torna, também, uma investigação sobre as bases do teatro de Milo Rau: o estudo dos limites e das possibilidades da representação da violência e de eventos traumáticos em cena, a busca pelo trágico da condição humana e a celebração do poder do teatro.
“La reprise” é a primeira etapa de uma série teatral de dez capítulos idealizada por Milo, “A história do teatro”, que busca revelar o modo como diferentes diretores se relacionam com o fazer teatral.
O que o levou a criar esta série, “A história do teatro”?
Pensei em criar uma série de obras que observassem certos crimes, na tentativa de definir o que é a representação. Tenho trabalhado com atores e não atores para representar histórias reais: crimes brutais ou realidades históricas. Esse novo projeto surge de uma peça anterior, “Five easy pieces” (nela, um elenco infantil investiga a história de um serial killer de crianças). Ali eu me perguntava como aquela história poderia ser representada, reconstruída. “La reprise” é um irmão mais velho de “Five easy...”, mas em vez de ter apenas o meu olhar sobre o teatro, convidei diretores para criarem dez capítulos. Não tem a ver com um livro de história do teatro. As peças investigarão as práticas desses artistas, suas relações com o teatro. Cada um escreverá a sua “história do teatro”. Serão diretores muito diferentes entre si porque a ideia é evidenciar a diversidade do que é o teatro hoje. O próximo capítulo será do Faustin Linyekula (dançarino e coreógrafo congolês).
Dentro do projeto, com que intenções “La reprise” foi criada?
Após “Five easy pieces” eu queria seguir investigando a violência, nas relações humanas, nas relações de poder que ocorrem num palco, entre crianças e adultos (“Five easy...”), ou entre atores no caso de “La reprise”. A nova peça começa com uma espécie de seleção de elenco para se recriar o caso desse jovem que foi torturado e morto. Então esse trabalho começa com essa busca de como poderia representar, literalmente, a tortura, as falas dessas pessoas etc. Diferentemente de fazer isso num filme ou numa performance, em que uma cena é feita apenas uma vez, no teatro é preciso encontrar uma técnica para que seja possível realizar isso a cada noite. Nesse sentido, a peça é também sobre a busca pela técnica de como representar tais questões no palco. É bastante brechtiana em certo sentido, sobretudo na primeira parte, em que vemos a seleção do elenco e a explicação dos truques que os performers terão de aprender para fazer a cena da tortura, então depois você vê a cena em si, com os atores já emocionados e chocados com a cena. Então a peça é sobre o aparato utilizado para se criar a ilusão e as emoções, sobre como interpretar emoções e como representar um crime real em cena. É importante levar a peça a diferentes lugares pois ela abre discussões sobre ética e representação. Sobre o porquê de apresentar uma cena de tortura de 20 minutos, o porquê de se mostrar alguém fazendo xixi sobre outra pessoa num palco.Vídeo de La reprise
E por que, na sua opinião, é importante apresentar tais cenas, recriar o atroz no palco?
Sinto que estamos perdendo certas capacidades: de se concentrar, ou de contemplar, o que me faz pensar em qual é o papel ou a finalidade do teatro, ou dos espectadores. Um pouco disso está nessa peça, que é, sobretudo, sobre o poder do teatro, de se acreditar em algo que se vê. Acho que o teatro tem a ver com contemplação e concentração em relação a uma série de coisas que nós ignoramos na nossa sociedade, coisas que acontecem, às vezes, afastadas dos grandes centros, como esquartejamentos e outros crimes terríveis, ou a própria morte em si, que tendemos a ignorar, mas são coisas que sempre estiveram dentro das sociedades ou nas bordas das sociedades, hoje ou no tempo de Shakespeare. Então acho que no teatro você pode trazê-las de volta e olhá-las novamente. Olhar concentradamente para todas essas coisas que são ignoradas na nossa vida diária.
O que o fez eleger um crime homofóbico como ponto de partida da obra?
Por algumas razões e, também, por acaso, porque um dos atores começou a acompanhar o julgamento desse caso de perto, pois ele vive em Liège, próximo de onde aconteceu o crime. Mas o fato é que eu queria abordar uma história de crime ocorrida na Bélgica, porque assumi a direção artística de um teatro daqui (NT Ghent), e porque na Bélgica não havia quase casos como esse. Foi um crime muito simbólico, e algumas leis foram mudadas no país após o ocorrido, em relação aos crimes de ódio. Então me deparei com esse grande crime de ódio ocorrido contra um homossexual. No entanto, resolvi adotar uma perspectiva mais universalista, que é a de observar o que leva seres humanos a torturar outro ser humano. Claro, a homossexualidade está presente, mas talvez não seja algo tão fundamental para essa peça quanto é para obras literárias recentes, como as de Édouard Louis ou de Didier Eriborn, por exemplo.
No ano passado completou-se dez anos desde a fundação da sua Cia. Nesse tempo, o que se tornou a base do seu teatro, ou suas obsessões enquanto dramaturgo e diretor?
Criei o instituto para investigar a política e a violência, e como essas duas instâncias estão ligadas. O que fiz em todas as minhas peças e meus filmes foi construir uma espécie de história da violência, a partir de dois sentidos para a palavra história: de um lado, as histórias concretas, de violências reais que aconteceram, e do outro, a história como ferramenta que nos possibilita observar como a violência funciona, como as revoluções acontecem, ou como os genocídios ou as crises econômicas acontecem e se repetem.
Na sua opinião, o que o teatro ou as artes podem oferecer de único quando decidem abordar conflitos geopolíticos recentes, ou casos de violência real como esse?
O que só as artes oferecem, neste momento, é o que chamo de instituições simbólicas, ou de solidariedade simbólica. É você poder estabelecer, num palco, espaços artificiais, ou seja, criar algo que não existe na realidade, mas que você pode fazer existir na realidade do teatro. Como um Tribunal Internacional para a economia, por exemplo, que é algo que não existe, o que é problemático em si, pois temos uma economia com impactos globais. Portanto, é pensar: “Se isso não existe, vamos criar”. Foi assim que criamos o Tribunal do Congo (“The Congo Tribunal”), e por três dias realizamos um julgamento sobre as consequências e impactos de empresas exploradoras no país. Em “La reprise” há a solidariedade entre atores e não atores, que constroem juntos uma realidade. Então o que faço é criar esses espaços que não existem mas que deveriam existir, e que podemos construir e fazer existir num palco. Isso é o teatro para mim.