SÃO PAULO — Para afastar a aura mítica, quase divina, que esconde o Tiradentes de carne e osso, Lucas Figueiredo investiu nos detalhes. Tarefa tortuosa, tal qual as estradas das Minas Gerais do Brasil Colônia. Para escrever “O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier”, livro recém-chegado às livrarias, o jornalista precisou aprender até mesmo sobre o comércio de relógios no século XVIII. É que o alferes tinha um relógio de bolso cor de âmbar com ponteiros dourados e uma inscrição indicando o local de fabricação: “London”. Naquela época, objetos mais despojados como este não eram ainda populares. A elite mineira preferia os relógios à francesa: decorados com paisagens pastoris. Tiradentes era vanguarda.
— Ele era muito diferente das pessoas de sua época — disse o jornalista, autor de outros livros-reportagem como “Boa ventura!”, sobre a corrida do ouro, e “Lugar nenhum”, sobre a ocultação de documentos na época da ditadura militar. — Vestia-se bem, mas não como os poetas Cláudio Manuel da Costa ou Tomás Antônio Gonzaga, outras figuras célebres da Inconfidência Mineira, que copiavam rendas e babados de Paris. Ele não tinha travesseiro em casa, mas tinha uma bússola, algo incomum e caro à época.
Figueiredo reconstituiu a vida privada do alferes e vasculhou até seu guarda-roupa. Tratava-se de um homem vaidoso, que gostava de cores vibrantes e tecidos finos. Tinha uma biblioteca respeitável para os padrões coloniais: quatro livros, incluso um dicionário que usava para traduzir uma edição francesa da legislação americana, seu manual de revolucionário. O relógio, no entanto, é falso. Figueiredo mandou fotos do objeto, hoje no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, para um perito do Museu Britânico, que sentenciou: a peça é suíça. No século XVIII, os suíços copiavam os relógios ingleses para catapultar as vendas, mas o serviço era tão bem feito que eles acabaram liderando o mercado.Tiradentes é fascinante, uma esfinge a ser decifrada, assim como o Brasil e o brasileiro. Nenhum outro personagem da nossa História encarna tão bem a situação absurda e inexplicável do país.
Figueiredo passou cinco anos lendo extensa bibliografia e documentos históricos, como os 11 volumes dos “Autos da devassa da Inconfidência Mineira”, reprodução das peças do processo judicial, para começar a decifrar Tiradentes:
— Deu trabalho! Tive que estudar os hábitos da época e cruzar os bens de todos os conjurados.
Quem teve mais sucesso ao percorrer essa estrada foi o brasilianista britânico Kenneth Maxwell, que publicou, em 1977, “A devassa da devassa”, no qual se afastou dos dramas dos personagens para apresentar análises sociais e econômicas da rebelião mineira. O historiador João Pinto Furtado pintou um Tiradentes menos liberal e democrata em “O manto de Penélope” (2002). Em “1789” (2014), o jornalista Pedro Doria se propôs a desmitificar não apenas Tiradentes, mas também seus companheiros revolucionários.
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“O Tiradentes” de Figueiredo se aproxima do “Joaquim” do cineasta Marcelo Gomes. Lançado em 2017, o filme retrata um personagem frustrado, pois trabalho duro e esforço individual não valiam nada na época colonial. O importante era ter amigos poderosos. Figueiredo o pinta como um trabalhador diligente e empreendedor. Cuidava dos dentes de ricos e pobres, além de ter trabalhado como mascate e minerador.
Ajudou também a desbaratar um bando de salteadores que aterrorizava a Serra da Mantiqueira com informações de alguns delatores. Mas, sem receber promoção nem aumento em mais de 10 anos de serviço militar, o alferes frustrado se encheu de ideias liberais.
Joaquim Silvério dos Reis, o delator da Inconfidência, de acordo com Figueiredo, era o oposto. Vivia de bajular os poderosos e cobrar favores. Após denunciar os conjurados, ganhou título de membro da Ordem de Cristo da Coroa Portuguesa e, quase 20 anos depois, uma pensão anual de 400 mil-réis por seus préstimos.
Figueiredo se esforçou para que seu Tiradentes não fosse porta-bandeira de ninguém. Lembra que, desde meados do século XIX, a figura do alferes foi apropriada por todo o espectro político-ideológico. O movimento republicano que pôs fim ao Império, mais tarde o Estado Novo de Getúlio Vargas e até a ditadura militar tentaram se escorar no mito do alferes. Tanto o ex-presidente Lula quanto o atual, Michel Temer, compararam-se a ele em discursos recentes para sugerir que haviam sido injustiçados.
— Todo mundo recorre a Tiradentes para afirmar que tem uma conduta correta perante a história. É tudo manipulação — diz Figueiredo. — Tiradentes é fascinante, uma esfinge a ser decifrada, assim como o Brasil e o brasileiro. Nenhum outro personagem da nossa História encarna tão bem a situação absurda e inexplicável do país.
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Joaquim era caprichoso com sua apresentação, e possuía um arsenal — incomum para a época — de utensílios de cuidado com a beleza. O alferes era dono de duas navalhas, que naquele tempo eram usadas tanto para fazer a barba quanto para cortar o cabelo. Tudo indica que ele mantinha a cabeleira bem tratada, até porque era dono de um pequeno espelho e de um penteador (avental sem mangas que vai do pescoço ao joelho usado para cortar cabelo). Pelo menos em algum momento da vida, é provável que Tiradentes tenha usado bigode ou barba e que tenha se preocupado em mantê-los domados. Só isso explica o fato de que possuía um “pano de barba” (toalha que era amarrada em volta do pescoço e esticada à frente do usuário de forma a recolher os pelos cortados).
A fim de fazer reverberar a falsa informação de que o motim era iminente, o alferes propalou a notícia em locais tradicionalmente propensos à disseminação de boatos. Assim, a Conjuração Mineira foi parar nos prostíbulos de Vila Rica, dos quais Joaquim era frequentador assíduo. Ao pregar nos bordéis, ele às vezes misturava o sonho republicano com seus mal atendidos anseios pessoais. Numa ocasião, estando em casa de certas michelas da capital mineira, uma delas, Caetana Francisca de Moura, pediu a Tiradentes que usasse de sua influência para facilitar o ingresso de seu filho no Regimento de Cavalaria. Sugerindo de forma misteriosa que em breve aconteceriam mudanças na capitania, Joaquim fanfarreou: “Deixe estar, minha camarada, que ninguém há de sentar praça a seu filho, senão eu”.
"O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier"
Autor: Lucas Figueiredo.
Editora: Companhia das Letras.
Páginas: 520.
Preço: R$ 79,90.