Alice Rohrwacher cursava o ginasial quando leu um pequeno artigo sobre uma fazendeira rica que se aproveitava do isolamento de sua propriedade para explorar, em regime de semi escravidão, os camponeses que trabalhavam e moravam em suas terras. O caso, registrado nos anos 1990, serve como ponto de partida para a trama de “Lazzaro felice”, terceiro longa-metragem da diretora italiana, centrado na figura de um jovem camponês de alma pura, imune à mesquinhez humana a sua volta.
NarcosMXGanhador do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes deste ano, o filme, disponível na Netflix, pode ser traduzido como uma parábola sobre o poder da bondade nos tempos atuais.
— O tempo inteiro a gente lê a respeito de pessoas que usam seus privilégios para aproveitar-se de outras. O episódio da nobre e seus meeiros, sobre o qual tomei conhecimento quando ainda era adolescente, me pareceu mais do que oportuno agora. — explicou Alice, 36 anos, em Cannes. — Mais do que nunca, parecemos confusos diante da possibilidade de vivermos juntos, em comunhão, sem a necessidade de tirar proveito do semelhante.
“Lazzaro felice” é um melodrama social incomum. A ação se passa, inicialmente, em uma fazenda numa época indeterminada e, posteriormente, move-se para os dias atuais. O personagem-título, interpretado pelo estreante Adriano Tardiolo, é inspirado em narrativas bíblicas: assim como o discípulo de Jesus, ele ressuscita dos mortos para continuar seu caminho de generosidade. O mágico e o surreal se confundem e amenizam aspectos grotescos da realidade italiana – e não somente dela.
— Acho que é o mais próximo que conseguiria fazer de um drama clássico, quebrando suas regras. Até porque o filme fala de ruptura de modelos de comportamento. É como se tivéssemos perdido a chave para decodificar o acesso à realidade, tudo é borrado – explicou a realizadora. – Corria o risco de fazer um filme politizado, daqueles bem aborrecidos, mas felizmente a figura de Lazzaro, com sua graça, pureza e inocência, aterrissou nessa história, dando uma dimensão de conto de fadas.
Salto no tempo
O angelical Lazzaro é um dos 53 lavradores da fazenda de Alfonsina de Luna (Nicoletta Braschi), mantida a custo da ignorância e do medo de seus empregados. Incapaz de distinguir abusos de gentilezas, ele acredita nas boas intenções da aproximação de Tancredi (Luca Chicovani), o arrogante e mimado filho dos patrões. A amizade inesperada lhe é tão preciosa que, depois de um acidente fatal, Lazzaro ressurge décadas no futuro decidido a reencontrar o amigo Tancredi e sua família, agora decadente, vivendo na cidade grande.
A figura e o comportamento de Lazzaro ganham uma estranheza ainda maior em um ambiente urbano, onde as formas de exploração humana se multiplicaram e sofisticaram — algumas de maneira legal. Mesmo assim, sua crença na humanidade parece inabalada. O título do filme remete a uma expressão italiana para designar pessoas que demonstram alegria ou prazer mesmo em meio à adversidades.
— Quando vemos um mendigo catando na rua, por exemplo, costumamos dizer: “Olha, aí está um Lazzaro feliz” —conta Alice, autora de “As maravilhas” (2014), outro filme que confronta o cenário rural com o mundo urbano, vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes. — São histórias distintas. Se fosse possível traçar um paralelo entre os dois, poderia dizer que “As maravilhas” conta a história de uma família de apicultores que decidiu viver no interior e ocupar uma casa abandonada. “Lazzaro feliz” poderia sugerir, de alguma forma, as razões pelas quais aquela propriedade está vazia.
Nascida e criada no interior, Alice testemunhou as transformações sofridas no campo nas últimas décadas.
— Acho que meus filmes nascem de minhas experiências diárias. Quando abro minha janela, no interior, onde moro, vejo as consequências da migração dos campos para a cidade. Há vilarejos quase totalmente abandonados, a exceção de vilas de gente endinheirada. As terras estão envenenadas, cultivadas por multinacionais do agronegócio. O trabalho que há nelas é executado por operários e lavradores temporários. O camponês e sua cultura estão desaparecendo.