RIO - Posso ser, e sou, um quase analfabeto econômico, porém sou isso já faz tanto
tempo que minha ignorância perdeu vigor, tornando-se um pouquinho menos
ignorante. Para mim, os hieroglíficos signos da Economia são tão misteriosos
quanto irresistíveis, e minha já vasta experiência como teimoso ledor de um
alfabeto que mal adivinho fez por formar cá um intérprete razoável de sua
dinâmica — acerto bastante na previsão de consequências das decisões de política
econômica, o vulgo “vai dar merda”. Consigo até antecipar o que seria justo ou
necessário à vista de quadros concretos, a tal realidade que me é tão cara. Sim,
é vero que esse tirocínio de observador leigo foi deveras facilitado por
governanças calamitosas recentes. Profissional das generalidades que sou, acabo
por identificar nos traços pontilhados a futura figura.
Agora, por exemplo, mesmo com o aparentemente insolúvel déficit fiscal
pairando como mil espadas damoclianas sobre os pescoços de sempre, entendo quem
aposta numa retomada mais vigorosa do crescimento, em 2019. O mercado, quer
dizer, o Mercado parece, ainda que só por oportunismo,
reconhecer coerência e coesão na equipe formada por Paulo Guedes. (Assim como
aqui no Brasil convencionou-se chamar social-democratas de neoliberais, agora, à
vista do desabrochar da inevitável primavera dos liberais, não se hesita em
tachá-los de ultraliberais)
Pois bem, acho no mínimo justo
escrever Mercado com inicial maiúscula, já que seu oponente usual é o Estado.
Tem efeito garantido, fácil e charmoso, declarar-se desconhecer quem diabos vem
a ser esse tal de Mercado. Ora, malandro, dá ganas de dizer, tu o conheces bem,
só não estás a associar o nome à p’ssoa... Pois não sabes que o Mercado
vem a ser, ora, vem a ser eu, tu e todos os melhores corações do mundo e quem
mais tiver uma poupancinha sarapa?
Entre os polos da ganância e do medo vicejou o Mercado, defendendo o
interesse inconfessável dos bem-intencionados: prosperar. Assim fazendo, o
famigerado Mercado libertou, por exemplo, a História da Arte das garras da
Igreja e da aristocracia; curou as doenças incuráveis de nossas crianças; salvou
nossas safras perdidas; multiplicou a população do planeta e sua expectativa de
vida sobre ele; tornou possível a cooperação sináptica entre seres humanos
separados por oceanos intransponíveis; em suma, ou, como quer o novo ministro da
Educação, em soma, o Mercado é um milagre. Será que daí vale citar Bandeira e
dizer que bendito o Estado, que é o fim de todos os milagres? Será?
Vamos recorrer ao processo de eliminação do escultor, tirando do mármore o
que não é leão e, lasca a lasca, desnudar o que separa uma coisa de outra, para
afirmar, sob uma chuva de pedras: tudo o que não é Estado, é Mercado, inclusive
suas ocasionais simbioses ornitorrínicas. Uma conclusão quase positivista!
Haveria apenas que corrigir, à la Barão de Itararé, o mote de Augusto Comte:
“Os vivos serão sempre governados pelos... mais vivos...”
Estaria o Estado para o amor assim
como o Mercado para o sexo? Tipo assim... Estado é estrada, Mercado é caminho;
Estado é mapa, Mercado é atalho; Estado é guia, Mercado é sarjeta; Estado é
intervenção, Mercado, reação; Estado quer ensinar, Mercado aprende; Estado é
valor, Mercado é preço; Estado é sermão, Mercado é fé; Estado é certeza, Mercado
é risco; Estado é muro, Mercado, concreto; Estado é boa intenção, Mercado,
malícia; Estado é casto, Mercado é pornográfico; Estado para, Mercado movimenta;
Estado promete, Mercado cumpre; Estado protege, Mercado emancipa; Estado é
ninho, Mercado é voo; Estado exige, Mercado seduz; Estado afirma, Mercado
conversa, e desconversa; Estado faz a lei presente, Mercado, a lei futura;
Estado é matrimônio, Mercado é paixão; Estado é hino, Mercado é rock; Estado é
valsa, Mercado, fuga; Estado marca, Mercado é marcado; Estado acaba, Mercado,
não.