GLENDALE, Califórnia — Em muitos aspectos, "She-Ra e as Princesas do Poder", a nova série da Netflix em parceria com a DreamWorks, será familiar para os fãs do desenho original. Adora é a protagonista, descobrindo a espada mágica que a transforma em She-Ra quando ela invoca “a honra de Grayskull”. Catra, sua companheira felina, também está de volta. Há unicórnios voadores com as cores do arco-íris e vilões de garras vermelhas gigantes, além das naves espaciais.
Links NarcosMas a nova versão, de Noelle Stevenson, elogiada pela crítica por suas HQs centrados em meninas, quer ir além da frivolidade barata. No lugar da animação muitas vezes estática do original, a nova She-Ra vive em um mundo vibrante com homenagens estilísticas ao artista francês Jean Giraud (também conhecido como Moebius), ao cineasta japonês Hayao Miyazaki e ao mainstream do anime. E a série aborda alguns tópicos bastante densos, como colonialismo, genocídio e isolacionismo, com o objetivo de se manter inspiradora.
— Eu amo o original — diz Stevenson, de 26 anos. — Mas queríamos manter o que era divertido e aprofundar.
A série original durou apenas duas temporadas e ficou provavelmente mais conhecida pela popular linha de bonecos da Mattel. Mas Stevenson acreditava que o desenho oferecia possibilidades de recriação. No original, quase todas as heroínas tinham exatamente o mesmo tamanho e forma, com rostos combinando e corpos de modelo de maiô (o que tornava tudo mais fácil para os animadores, para não mencionar os fabricantes de brinquedos, verdadeira motivação do desenho). Todas elas tinham cabelos longos dos anos 80. E quase todas eram brancas (Netossa, uma adição tardia ao programa, foi uma exceção notável).
— Uma das primeiras coisas que fizemos foi criar personagens de tamanhos, formas e etnias diferentes — diz Stevenson, numa entrevista em seu escritório na Dreamworks.
Origens e formas diferentes
Na nova série, que estreia nesta sexta-feira, há guerreiras negras, princesas do gelo asiáticas e sereias marrons. Os tipos de corpo variam de esbelto a arredondado; penteados incluem longas tranças estilo Rapunzel. O elenco de voz traz Karen Fukuhara (“Esquadrão Suicida”), Reshma Shetty (“Royal Pains”), Vella Lovell (“Ex-Namorada Louca”) e, como convidada especial, Sandra Oh (“Killing Eve”) — tão diverso quanto os personagens que elas representam.
Aimee Carrero, nascida na República Dominicana e criada em Miami em uma vizinhança predominantemente latina, é a voz da protagonista de aparência nórdica. "Eu nunca vou ser loira", ela disse, "mas posso ficar loira enquanto sou a She-Ra".
A DreamWorks adquiriu os direitos de "She-Ra" em 2012, junto com mais de 450 outras personagens da Classic Media, como "Gasparzinho", "Lassie" e "Voltron: Defensor do Universo". Pouco depois, Beth Cannon, executiva da DreamWorks e fã de “Nimona”, HQ de Stevenson, procurou a autora para conversar sobre o desenvolvimento de uma história.
Stevenson gostava muito do original da Filmation, de seus personagens de ação (“realmente gostava de brincar com os bonecos”) aos personagens malucos (“havia uma princesa que transformava suas pernas em um rabo de peixe”). Mesmo assim, ela reconhecia as limitações artísticas, desde o movimento esparso até o uso rotineiro de material de arquivo.
Para a nova versão, a equipe de animação criou fundos vívidos e paisagens de ficção científica que lembram Moebius (“Heavy Metal”) e Roger Dean (aquelas capas icônicas dos álbuns do “Yes” ). Há o ethos ecológico de Miyazaki e as indicações estilísticas do animé contemporâneo — Os olhos de Adora se tornam gigantes e cintilantes quando ela vê um cavalo pela primeira vez.
Infantil ou sexy?
Os artistas imaginaram She-Ra como uma adolescente magra e em forma, com calções de bicicleta brancos e um top de gola alta. Substituíram seus saltos altos por botas (aquelas com um elegante branco, azul e dourado). Mesmo assim, o novo visual atraiu a ira de um grupo pequeno mas barulhento de rapazes criticarando a nova She-Ra por não ser sexy o suficiente. Temos uma parede repleta de arte criada por fãs, cheia de arte de pessoas que se conectaram com essa personagem. É para essas pessoas que fizemos isso. Se você quiser assistir um mulherão cheio de curvas, tem muitas outras opções por aí.
Em resposta, hordas de fãs foram às redes sociais para defender o novo visual e questionar por que homens aparentemente adultos eram tão envolvidos emocionalmente com o corpo de uma adolescente de animação. Dezenas de mulheres e meninas criaram e modelaram seus próprios trajes cosplay inspirados em She-Ra. Outras ainda — incluindo artistas profissionais de companhias de animação da cidade — criaram centenas de peças de arte de fãs, muitas das quais Stevenson postou em sua conta no Twitter.
— Temos uma parede repleta de arte criada por fãs, indo do chão ao teto, cheia de arte de pessoas que se conectaram com essa personagem — diz ela. — É para essas pessoas que fizemos isso. Se você quiser assistir um mulherão cheio de curvas, tem muitas outras opções por aí.
Dentro do estúdio de gravação da DreamWorks, Stevenson fez uma pausa nas funções de showrunner para oferecer sua voz a Spinnerella, uma das amigas de She-Ra, ao lado de Carrero, Merit Leighton (Alexa e Katie) e Krystal Joy Brown (que interpretou Diana Ross no musical da Broadway “Motown”). Estimuladas pela diretora de voz Mary Elizabeth McGlynn, as quatro mulheres lutam contra as forças da Horda, tudo coroado por um caloroso “Pela honra de Grayskull!”, dito por Carrero.
— Eles sempre guardam essas partes para o final do dia, porque sabem que depois disso minha voz fica totalmente perdida por algumas horas — revela Carrero.
Equipe feminina
Com a exceção de um sujeito, todos dentro e fora do estúdio eram do sexo feminino. O desenho tem um ator masculino no elenco de vozes regulares (Marcus Scribner, de “black-ish”) e uma sala de roteiristas exclusivamente feminina (uma situação inédita para todas as envolvidas).
— A animação ainda é muito masculina, então é a primeira vez que trabalho com tantas mulheres — diz Josie Campbell, a editora de histórias que escreveu o episódio “Princess Prom”. — Tem sido um grande prazer. Todas as nossas roteiristas são ótimas e somos todas um bando de geeks.
No trabalho de Noelle você vê porque é tão importante ter jovens mulheres talentosas em altos cargos criativos
Françoise Mouly, experiente editora de quadrinhos e editora de arte na "New Yorker", era uma das juradas que deu a Stevenson um prêmio de melhor trabalho em HQ por “Nimona”, em 2012.
— No trabalho de Noelle você vê porque é tão importante ter jovens mulheres talentosas em altos cargos criativos — diz Mouly.
Todo o tempo que elas passam sem falar sobre rapazes, abre espaço para as princesas se preocuparem com temas mais relevantes, como enfrentar a Horda, a personificação de alguns dos maiores males do mundo. Colonização em nome da "ordem"? Está lá. Genocídio (apenas sugerido) e a destruição do planeta através da guerra? Está lá. As roteiristas também tratam de temas como o perigo do isolacioanismo e preconceitos.
Além desse material mais cabeçudo, os relacionamentos formam o núcleo da animação, afirma Stevenson. Ao longo da série há romance, ciúmes, paixões e tudo o mais que esses sentimentos trazem consigo.
— Elas são adolescentes — lembra a roteirista. E isso inclui a própria Adora/She-Ra.
Ela pode acabar contigo com apenas um golpe de sua poderosa espada, mas no início da série nunca foi a um baile, uma festa ou se apaixonou. Teme que suas novas amigas não gostem dela e se vai conseguir cumprir essa missão de princesa-guerreira.
— Quando você está sozinha se tornando uma jovem adulta, passa a sentir tudo isso — diz Stevenson. — Você se apaixona pela primeira vez, às vezes se distancia das suas amigas. Há todos esses sentimentos a serem explorados. E nossas personagens têm muitos sentimentos.