RIO — Em fuga de um grupo de criminosos, uma mulher vai parar na pequena e isolada Dogville, uma cidade de habitantes pacatos, de cuja cumplicidade e generosidade ela passa a depender para sobreviver. Mas, à medida em que o cerco dos perseguidores se fecha, quanto mais a fugitiva se mostra bondosa, mais humilhação ela vai sofrendo por parte dos que se dispuseram a escondê-la.
Fábula contemporânea criada pelo dinamarquês Lars von Trier, “Dogville” dividiu críticos e espectadores em 2003, quando lançada no cinema. Quinze anos depois, suas provocações chegam ao palco, na montagem idealizada por Felipe Lima e dirigida por Zé Henrique de Paula (de “Urinal, o musical” e “1984”), que estreia nesta sexta-feira no Teatro Clara Nunes.
Links Dogville— Infelizmente, este é o momento ideal para se falar sobre isso, sobre esse mal que geralmente acaba sendo praticado em nome de um bem maior — analisa Felipe, que há pelo menos dois anos vinha alimentando o plano de trazer para os palcos brasileiros a adaptação teatral de “Dogville”, feita pelo dinamarquês Christian Lollike (chancelada por Von Trier).
Com um elenco de 16 atores encabeçado por Mel Lisboa (como Grace, a protagonista) e Fábio Assunção (Chuck, um dos seus algozes na cidade), “Dogville” trouxe desafios para Zé Henrique de Paula.
— A minha maior questão é que o filme é muito icônico. A primeira coisa que as pessoas me perguntavam é se ia ter aqueles desenhos no chão que o Lars criou. Não, a gente buscou uma lógica que tivesse um ponto de vista invertido em relação ao filme. Se ele tinha esse ponto de partida, muito teatral, a gente foi atrás de uma experiência teatral que flertasse com a linguagem cinematográfica — conta o diretor, que recorreu a projeções e ao uso de cadeiras como únicos elementos cênicos. — Foi uma tentativa de estimular sensorialmente o espectador de maneiras diversas. Sei que pode soar como heresia, mas queria que as pessoas esquecessem o filme durante a peça.
Zé Henrique conta ter tomado algumas liberdades até mesmo em relação à adaptação teatral de Lollike:
— Fiz escolhas no sentido de deixá-la mais brechtiana, com distanciamento crítico por parte dos próprios personagens. Essa história envolve tantas questões de natureza moral a respeito do que é o certo e o errado, do que é fazer o bem e o que é fazer o mal, que é interessante que as pessoas consigam sair com uma sensação de que realmente precisam pensar. Mesmo se elas forem comer uma pizza depois.
Apreciador de Von Trier, Fábio Assunção conta que “Dogville” representou para ele, de certa forma, uma volta no tempo.
— Eu não faço peça com tanta gente assim desde uma montagem de “Blue jeans”, em 1991 — recorda-se. — “Dogville” aborda até a questão do capitalismo, dessa negociação em que uma parte tenta tirar vantagem da outra. Quanto mais a Grace vai se fragilizando na história, menos ela vale. E essas personagens que começam amistosas logo estão ferozes e cruéis. É um tratado social.
Segundo o ator, diferentemente dos outros habitantes de Dogville, o seu Chuck tem uma visão crítica:
— Ele sabe que vai dar merda, é o único que fala a verdade. Ele tem um cansaço. Eu interpreto sentindo umas dores, umas contrações.
Mel Lisboa, por sua vez, vê sua Grace como “uma personagem muito complexa, ambígua, sinuosa e misteriosa”:
— Ela chega àquela cidade e ninguém sabe qual é a sua história. A Grace tem essa coisa muita boa, vai sendo explorada e não reage. O que eu estou tentando fazer é que a personagem seja crível e que o espectador possa ser conduzido por ela.
Zé Henrique de Paula define a Grace do seu “Dogville” como “uma espécie de experiência sobre a bondade em estado puro”:
— Você se encanta com a quantidade de luz que ela irradia, mas quanto mais luz, mais sombra tem. Ela chega a uma comunidade que vive em tempo nublado, agarrada a suas próprias convicções. Quando os habitantes entram em contato com essa luz, vê-se a sombra que não dava para ver antes. Eles fazem coisas terríveis quando são confrontados com a sua própria imperfeição.
Mel Lisboa, que voltará à TV como a Rita Lee da série “Elis”, traça paralelos entre “Dogville” e o Brasil desse apagar de luzes de 2018:
— Quando as pessoas estão acuadas, com medo, isso também acaba trazendo o que elas têm de pior. É muito propício o momento para se fazer essa reflexão através de uma obra de arte.
— Dogville é um lugar que não tem futuro — acrescenta Fábio Assunção. — Aqui, a gente tem muita esperança, o país pode crescer. Temos um retrocesso agora, mas não é no país inteiro.
SERVIÇO
“Dogville”
Onde: Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea — Rua Marquês de São Vicente, 52, Gávea (2274-9696). Quando: Sexta e sábado, às 21h. Domingo, às 20h. Até 16 de dezembro. Quanto: De R$ 50 a R$ 100. Classificação: 16 anos.