RIO — Com a chegada de Francisco Franco ao poder em 1939, estabelecendo uma ditadura militar após três anos de guerra civil, a Espanha passou a exercer uma censura oficial sobre seu cinema. Temas como o conflito interno, a miséria da população, a sexualidade e qualquer questão que afrontasse a moral cristã eram considerados tabu e proibidos. Ainda assim, diretores como Luis García Berlanga, Juan Antonio Bardem e Luis Buñuel encontraram formas de atravessar o bloqueio dos censores e produzir grandes filmes retratando a realidade espanhola no período.
Essa produção está na mostra “Os filmes que driblaram a censura de Franco”, na Caixa Cultural, que vai desta terça-feira até o dia 11 de novembro. Entre os 12 longas-metragens que serão exibidos, os métodos usados pelos cineastas para passar mensagens políticas e críticas são variados. Vão desde adaptações no roteiro até a fuga com material de filmagem do país. Links cinema
— Os filmes estrangeiros eram cortados ou tinham sua história alterada na dublagem. Já os espanhóis eram submetidos à censura desde o roteiro — destaca a curadora espanhola Marta Sánchez. — Qualquer tema que contrariasse a visão franquista do país era suprimido. As mulheres eram sempre mães ou donas de casa. Não havia fome ou violência, nem eram permitidas referências à Guerra Civil ou ao pós-Guerra. As obras deveriam retratar uma versão otimista, com um país desenvolvido e com um futuro brilhante, além de moralmente rígido.
“A morte do ciclista” (1955) de Bardem, por exemplo, narra a história de um casal de amantes que atropela um homem. Temendo que seu relacionamento seja descoberto, eles abandonam a vítima. O cineasta fazia uma provocação à hipocrisia da burguesia espanhola diante de uma ameaça a seus privilégios, o que não foi percebido pelo governo a primeira vista.
— Bardem sabia que para a igreja católica, para os censores, a questão dos personagens serem adúlteros iria chocar mais do que a parte política. Assim, escolheu matar os protagonistas no final, para garantir que o filme seria aprovado — conta a coordenadora da mostra, Júlia Dias.
Cineasta do governo usava ironia
Há também as obras que apostam nas metáforas e sátiras para enganar a censura. O cineasta Berlanga, dos premiados “Bem-vindo, Mister Marshall!” (1953) e “O carrasco” (1963), foi o primeiro a satirizar as instituições da sociedade franquista. Mesmo trabalhando por encomenda do governo, ele transformava filmes que seriam propagandistas e folclóricos em comédias com uma dose de ironia muitas vezes só percebida pelos censores quando já estava em exibição.
Já Buñuel, para finalizar “Viridiana” (1961, vencedor da Palma de Ouro em Cannes), teve que sair do país. O filme narra a história da visita de uma jovem prestes a se tornar freira a um tio solitário, que está à beira da morte. O homem, pervertido e obcecado pela sua beleza, tenta seduzi-la de todas as formas.
— Buñuel disse que precisava finalizar o filme com um equipamento de ponta que só existia na França. Com isso ele conseguiu tirar as cópias do país e concluir o longa do seu jeito — diz Júlia.
Exibida anteriormente em Nova York e Londres, a mostra terá ainda três encontros sobre a importância histórica da produção no período. Mesmo após a morte de Franco, em 1975, a censura continuou na Espanha durante a transição democrática. Segundo Júlia, mostrar essas obras e debater as dificuldades é essencial para o momento atual, em que reações conservadoras à livre circulação artística crescem no mundo.
— Esses filmes são os que puderam ser feitos, com muitas limitações. Não se pode mitificar e dizer que “ah, a censura deixa os diretores mais criativos”. Não, é uma coisa muito séria. Na Espanha, foram 40 anos em que você não podia tratar da memória do próprio país.
Filmes de Buñuel e Pilar Miró estão entre os destaques
“Viridiana” (1961)
Longa que dividiu a Palma de Ouro de Cannes em 1961 com o francês “Uma tão longa ausência”, o clássico de Buñuel narra a história da personagem-título, que, pouco antes de ser ordenada , faz uma visita a seu solitário tio, que tenta seduzi-la de todas as formas, antes de morrer, o que muda completamente a sua vida. “É um dos pilares da cinematografia francesa, uma verdadeira obra de arte”, enaltece a curadora Marta Sánchez.
“Furtivos” (1975)
O longa de José Luis Borau traz a história de um caçador que conhece uma fugitiva de reformatório e a leva para morar no casebre isolado que divide com a mãe, uma convivência que gera uma tensão insustentável. Realizado ao fim da ditadura franquista, o filme é considerado um marco na luta contra a censura do regime. “Tudo o que acontece naquele bosque isolado cria uma metáfora maravilhosa da ditadura”, diz a curadora.
“O crime de Cuenca” (1981)
Baseado em uma história real, o longa da diretora Pilar Miró narra a história de dois amigos de um vilarejo em Cuenca, acusados de assassinato pelos vizinhos, que confessam o crime após serem submetidos a tortura. “O longa foi filmado em 1978, três anos após a morte de Franco, e ainda assim passou anos censurado”, comenta Marta.
“Sulcos” (1951)
O longa de José Antonio Nieves Conde mostra a mudança da família Pérez do campo para Madri, em busca de uma vida mais fácil, que nunca se realiza. “Foi uma das primeira obras a romper com a imagem da família tradicional, e a mostrar fatos como a fome e a prostituição”, ressalta a curadora.