NOVA YORK — Shirley Jackson escreveu em seu clássico romance de 1959, "A asssombração da casa da colina", um dos grandes parágrafos de abertura da história do horror, descrevendo a mansão condenada do título como insana, antes de terminar com a frase sinistra: "E tudo o que por lá andasse, andava sozinho".
A nova série da Netflix, “A maldição da residência Hill” abre com uma leitura desta passagem, sugerindo fidelidade ao material original. Mas, se você ouvir atentamente, notará que a perspectiva mudou radicalmente, afastando-se do narrador original do livro.
Links sériesA série é uma adaptação livre que ambiciosamente une os terrores de uma história de fantasmas com um intrincado drama familiar multigeracional. O homem que fala o monólogo de abertura é Steven Crain (Michiel Huisman), autor de um best-seller baseado na experiência de sua família em uma casa mal-assombrada chamado... "A asssombração da casa da colina".
Em apenas alguns segundos, a série homenageia Shirley Jackson enquanto a apaga ao mesmo tempo, uma analogia adequada para essa produção que deve encantar e frustrar os fãs de terror em igual medida. Jackson ressurge no episódio seguinte, sob a forma de uma menina lendo o conto "A Loteria". Um mundo no qual Jackson escreveu "A Loteria", mas não "A asssombração da casa da colina" não faz sentido, mas em contos sobrenaturais, uma adesão rígida à lógica é claramente desnecessária.
Outras versões
Toda adaptação de uma grande história de terror tenta implicitamente responder à mesma pergunta: que parte desse material de origem é a mais assustadora? O filme magistral de Robert Wise, "Desafio do além" (1963), baseava-se na ideia de que nenhum fantasma é tão assustador quanto a antecipação de sua chegada. O horror está na sugestão, na provocação do monstro que nunca mostra seu rosto.
Stephen King, que uma vez tentou adaptar a obra de Jackson para uma série de TV chamada "Rose Red", reverenciava o livro e o filme, mas era cético em relação a sua extrema discrição, que ele classificava como "jogar pelo empate e não pela vitória". Além disso, conforme o cinema de horror se tornava mais direto e os efeitos especiais e maquiagem mais sofisticados, ficou cada vez mais difícil manter os monstros no armário.
O remake de Jan De Bont em 1999, também chamado "A casa amaldiçoada", privilegiou os efeitos visuais, o que explica em parte sua péssima reputação. Mas o filme constrói um argumento crível para o elemento mais assustador da história de Jackson: a própria mansão. De Bont mostra meticulosamente suas estátuas arrepiantes, portões de ferro e escadaria em espiral precária, e o design ornamentado e maravilhosamente excêntrico ofusca os atores em quase todas as cenas.
Mike Flanagan, criador da série da Netflix e diretor de todos os episódios, seguiu um caminho completamente diferente. Embora sua série não seja cheia de sangue, ele mostra muito do sobrenatural, apresentando alguns fantasmas assustadores. E, o que é mais arriscado, se afasta mais da casa do que as adaptações anteriores, sacrificando um pouco da claustrofobia que uma boa história de casa assombrada pode gerar.
A mansão é constantemente antropomorfizada no livro, mas em vez de usar o design para mostrar isso, Flanagan dá a um personagem um longo monólogo sobre como a casa é como um corpo.
O passado assombra o presente
Flanagan já dirigiu "Jogo perigoso", adaptação de Stephen King tão enraizada em um só cenário que até mesmo parece uma peça de teatro. Mas em sua versão de "A casa amaldiçoada", os terrores da mansão assombrada são menos importantes que os das pessoas e seus relacionamentos.
Como outros diretores que contribuem para o atual renascimento do terror adulto, ele é atraído pela psicologia de personagens traumatizados, pela forma como as aparições podem ser a manifestação de um estado mental frágil.
The Haunting of Hill House | Official Trailer
Em vez de contar a história de um grupo de estranhos convidados para a casa por um médico estudioso do sobrenatural, a série se concentra nas relações disfuncionais de uma família que já se hospedou ali. O casal (Carla Gugino e Henry Thomas), com cinco filhos, então muda-se para a casa a fim de renová-la. Mas acabam pagando caro por isso e os acontecimentos assombram a vida de cada uma das crianças.
O roteiro vai e volta da infância para a idade adulta, sublinhando como eventos horríveis se alojam na psique das personagens. Logo no início, vemos o pai frenético, reunindo seus filhos e fugindo para um hotel. O que aconteceu naquela noite paira sobre todos os dez episódios e, antes de revelá-lo, Flanagan mostra como o passado assombra o presente.
O pior medo nessa versão não é andar sozinho, mas com seus parentes. Steven Crain escreve um livro que o torna famoso, mas também divide a família pois sua irmã Shirley (Elizabeth Reaser) acha que ele está explorando a tragédia familiar. Theodora (Kate Siegel) trabalha como psicóloga infantil, o que também traz memórias difíceis, e Luke (Oliver Jackson-Cohen) luta contra o vício. A criança mais abalada talvez seja Nell (Victoria Pedretti), cujo estado frágil ecoa o de Eleanor Vance do livro original e a leva de volta à casa e a uma reunião com toda a família. (Timothy Hutton interpreta a versão mais antiga do patriarca Crain.)
Para séries de terror — que tem uma tradição de vítimas mal construídas e de isolar pessoas em espaços ou cabanas na floresta em vez de movê-las em narrativas densas — isso é uma tonelada de enredo. Para não mencionar os vários discursos teatrais. Flanagan combina isso de forma inteligente, com surpresas para os fãs da trama original. É uma história intrincada, emocionante e abrangente, mas os sustos parecem ter sido deixados de lado.
Os principais pontos de virada da série são construídos em cima de mentiras familiares, estranhas coincidências e decisões mais comuns em romances sobre a crise da meia-idade do que em contos góticos do sobrenatural. Se não fosse pelo eventual inseto rastejando para fora da boca de um cadáver ou pelo fantasma flutuante espiando debaixo da cama de uma criança, você poderia confundir “A maldição da residência Hill” com um drama familiar.