CARLSRUE (Alemanha) — Empurrando um carrinho de bebê em direção ao espaço de ensaio do Badisches State Theater, em Carlsrue, uma aprazível cidade no sudoeste da Alemanha, Anna Bergmann parou para confortar seu filho de 2 anos e meio, que mudou de um comportamento alegre para soluços de partir o coração. Felizmente, uma brincadeira ao redor do chafariz logo o animou de novo.
— Isso realmente nos faz relativizar o medo de ensaio — disse Bergmann, nova diretora artística do teatro, balançando a cabeça.
Bergmann é a primeira mulher a ocupar o cargo no teatro, uma instituição financiada pelo Estado que também tem apresentações de óperas, balé e outras artes performáticas.
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Apesar de ser conhecida nos círculos de teatro alemães, sua indicação foi em um campo dominado majoritariamente por homens. Sua primeira grande decisão foi bastante radical: cansada de ouvir que teatros gostariam de contratar diretoras, mas não conseguiam achar muitas delas, afirmou querer que, durante sua primeira temporada no comando, mulheres liderassem a maioria das produções. O diretor-geral do teatro, Peter Spuhler, que supervisiona a instituição como um todo, propôs ir além: por que não usar exclusivamente diretoras?
Bergmann concordou. Assim, a temporada começa no domingo com "Nora, Hedda and her sisters, uma mistura das peças de Henrik Ibsen dirigida pela própria Bergmann, e vai continuar com apresentações dirigidas por outras 10 mulheres (e nenhum homem).
DESEQUILÍBRIOS
A ação pretende compensar alguns desequilíbrios em teatros alemães. Um estudo recente feito pelo Conselho Alemão de Cultura descobriu que a desigualdade de gênero no cenário do teatro alemão era mais extremo do que o esperado. As últimas duas décadas, por exemplo, viu um crescimento de apenas 3% no número de mulheres comandando teatros, trazendo o número para 22%. Além disso, atores ainda ganham, em média, quase um terço a mais que atrizes com as quais trabalham.
— Todos estavam envergonhados — disse Cornelie Kunkat, porta-voz do Conselho Alemão de Cultura, sobre as descobertas da pesquisa. — Em 2018, não podemos mais ter esses números.
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Em jogo, Kunkat acrescentou, está quem determina as narrativas da sociedade. Ter mais mulheres em posições de poder "pode realmente fazer uma grande diferença", ela disse.
Além da disparidade na remuneração, mulheres são prejudicadas em teatros alemães pela desigualdade nas responsabilidades parentais, que não encaixam bem com as altas carga horárias de trabalho e por uma tendência geral de ver mulheres como abelhas-operárias em vez de grandes artistas, de acordo com Anne Peter, que escreve para a "Nachtkritik", revista online do State Theater.
Fazer contatos também é um desafio. "Homens recomendam homens sem pensar duas vezes", diz Spuhler, acrescentando ter feito um esforço consciente para contratar mais homens depois de participar de uma reunião de líderes de teatros há dois anos.
— Antes, eu pensava "estamos falando sobre qualidade, não há teto de vidro". Então olhei ao redor e vi 50 homens — ele lembra. — O número de mulheres tinha diminuído, na verdade. Eu achei que alguma ajuda era necessária.
CRÍTICAS E ELOGIOS
Ele decidiu agir. Em vez de escolher os diretores das várias disciplinas do State Theater a partir de uma lista de homens cujos nomes brotavam na cabeça, preferiu levar mais tempo para procurar candidatas mulheres. Com essa nova temporada, mulheres também estão na liderança dos programas de ópera e balé do teatro.
Se você contrata 100% de diretores homens, ninguém nota. É um teatro, fazendo uma temporada desse jeito. Se quiséssemos destituir o patriarcado precisaríamos 2 mil anos de apenas diretoras mulheres. Por que os homens estão tão irritados com isso?A decisão de Bergmann de ter uma temporada totalmente dirigida por mulheres atraiu muita cobertura positiva da imprensa, mas causou agitação. Em um debate enérgico na Nachtkritik, um crítico escreveu: "É sempre perigoso quando a ideologia determina ações políticas e sociais", para concluir: "Diretores homens competentes podem não ser mais permitidos a trabalhar em Carlsrue".
Em outros lugares, críticos expressaram preocupação sobre se o exemplo de Carlsrue seria isolado ou que, na era do #MeToo, focar em mulheres seria simplesmente uma decisão de carreira inteligente por parte de Spuhler.
Muitas mulheres do teatro disseram estar perplexas com as reações negativas.
— Se você contrata 100% de diretores homens, ninguém nota — disse Alia Luque, uma das 10 diretoras escolhidas por Bergmann para a temporada. Ela vai dirigir a peça "Europe escapes do Europe", de Miroslava Svolikova.
— É apenas um teatro, fazendo uma temporada desse jeito. Se quiséssemos destituir o patriarcado precisaríamos 2 mil anos de apenas diretoras mulheres. Por que os homens estão tão irritados com isso? — concluiu.
NOVAS ROTINAS
Quase todo mundo concorda que é cedo demais para dizer o impacto que essa temporada pode ter para o teatro. Mas algumas diferenças foram notadas de imediato. Por exemplo, Spuhler destacou, muitas das novas funcionárias levam seus filhos para o trabalho.
O teatro incluiu algumas cadeiras para crianças na cantina, e muitos ensaios agora contam com a presença de jovens espectadores. Em um fim de tarde recente, o filho de Bergmann, Louis, se mostrou confuso ao ver o palco vazio no espaço de ensaio do teatro.
É importante dar a mulheres com filhos uma chance de trabalhar. É muito importante saber o que é possível"Onde estão as pessoas?", ele perguntou. "Os atores?", respondeu Bergmann. "Eles vêm mais tarde, quando você estiver na cama".
Em outro palco, a diretora Mirah Laline amamentava seu filho enquanto demarcava uma cena.
"Tem que existir uma forma de combinar vida privada e trabalho", ela disse mais tarde, em uma entrevista.
— É importante dar a mulheres com filhos uma chance de trabalhar — concorda Bergmann, uma mãe solteira que, chegando ao teatro de Carlsrue, aumentou os salários das funcionárias para alinhá-las aos dos homens. — É muito importante saber o que é possível.
Shirin Sojitrawalla, crítico de teatro e membro do júri que escolhe as 10 melhores peças de países que falam alemão para serem apresentadas no festival Theatertreffen, em Berlim, diz que o experimento no Badisches State Theater é uma boa ideia, principalmente porque diretoras costumam ser relegadas ao teatro infantil ou a teatros menores. Isso faz com que seja mais difícil para membros do júri, que selecionam a partir de grandes palcos, alcançarem algum tipo de igualdade entre gêneros em festivais de prestígio.
Na verdade, quando o júri do Theatertreffen foi composto em sua maioria por mulheres no ano passado, ele selecionou apenas uma peça dirigida por uma mulher.
— Foi realmente constrangedor — disse Sojitrawalla.
Em Carlsrue, a mãe de Bergmann chegou para buscar Louis, libertando a diretora para uma noite de ensaios de figurino para "Nora, Hedda and her sisters".
— Eu tenho todos esses louros por antecipação — ela diz sobre a temporada que se aproxima. — Significa apenas que eu preciso trabalhar ainda mais duro. Como as mulheres sempre precisam que se esforçar mais.